sábado, 14 de julho de 2007

Luso 2006 - Luís Loureiro

Decorria o mês de Setembro de 2005.

Algo de estranho acontecia na vivência diária do Luís: recordamos a ingestão desmesurada de líquidos, o emagrecimento acentuado, a estranha apatia, o inusitado e permanente cansaço.

Da recomendável consulta de pediatria, passando pela realização das necessárias análises e até ao diagnóstico final, o tempo arrastava-se de forma incrivelmente lenta.

Enfim, a notícia chegou, tão cruel quanto irreversível: o pâncreas do Luís deixou de cumprir a sua função essencial – produção de insulina -, o que vale por dizer que o Luís foi acometido, de forma permanente, da Diabetes tipo 1.

Após um curto período de efectivo desnorte e de aparente incapacidade para reagir à fatalidade que parecia inultrapassável, a equipa técnica que nos acompanhou no Pediátrico de Coimbra fez-nos compreender, na sequência de um trabalho gradual e persistente, que era preciso reaprender a viver, agora e sempre com a Diabetes.

Porém, as perguntas surgiam:

como, se nenhum dos membros da nossa família e amigos tinha conhecimentos consistentes na área da saúde e a informação relevante era debitada a um ritmo que, aparentemente, era impossível de acompanhar ?

com quem, se na nossa família e no nosso círculo de amigos não existia nenhuma pessoa diabética?

Foi neste enquadramento que surgiu a oportunidade de nos tornarmos sócios, como efectivamente nos tornámos, de uma associação que, diziam-nos, nos poderia ajudar a encontrar respostas para essas perguntas: a DTT.

Em Maio de 2006, surgiu o convite para participarmos, entre 8 e 11 de Junho de 2006, num campo de férias promovido pela DTT para crianças diabéticas com idade até aos 10 anos e seus familiares directos, no Luso.

Ao princípio hesitámos em aceitar o convite: será que valeria a pena? será que não estaria em causa um encontro que poderia contribuir, por via de uma auto-comiseração colectiva, para recalcar a vertente negativa da vivência com a Diabetes?

Apesar dessas hesitações resolvemos aceitar o convite: em boa hora o fizemos.

Concentrados os participantes no Inatel do Luso, nos quais se incluíam 15 crianças diabéticas, ao fim da tarde de 8/6/2006, eis que chegou o primeiro momento aparentemente constrangedor: o de repartir a mesa do jantar com membros de outra família que nos era estranha.

Porém, por imediata e natural iniciativa das crianças presentes em cada mesa, rapidamente foram demolidas as barreiras ao diálogo entre membros de famílias reciprocamente desconhecidas.

Foi o ponto de partida para uma experiência largamente positiva e francamente enriquecedora.

À noite, enquanto as crianças continuavam a brincar, dando nota da sua inesgotável energia, os seus pais tiveram oportunidade de participar numa primeira actividade informativa promovida pelo corpo técnico destacado para supervisionar e acompanhar o campo de férias, subordinada ao tema da relação entre alimentação e Diabetes.

Vários foram os ensinamentos colhidos, a saber: distribuição dos alimentos pela Roda dos Alimentos e informação por esta prestada; diferentes tipos de nutrientes e alimentos que os integram; nutrientes que interferem com as glicémias (hidratos de carbono/glícidos/glúcidos) e nutrientes que não interferem (proteínas, lípidos, vitaminas, sais minerais...); alimentos que interferem com os níveis da glicémia no sangue (v.g. pão, cereais, leguminosas, batata, arroz, bolachas, massa, frutas, bebidas açucaradas...) e alimentos que não interferem (v.g. água, carne, peixe, legumes...); noção de equivalente (quantidade de alimento que fornece 15 gramas de hidratos de carbono); quantidades diferenciadas dos diferentes tipos de alimentos para proporcionarem 15 gramas de hidratos de carbono (v.g. 25 gr de pão branco; 15 gr de cereais; 50 gr de massa cozida; 80 gr de batata cozida; 6 colheres de sopa de ervilhas ou favas; 2 conchas de sopa de legumes; 1, 5 concha de canja; 2 iogurtes magros sólidos; 1 iogurte magro líquido; 180 gr de laranja; 70 gr de banana; 150 gr de tangerina; 120 gr de pêra; 200 gr de morangos; 110 gr de cereja; 120 gr de melão ou melancia ...); quantidade diferenciada de insulina, em cada criança, para cada equivalente.

A partir dos ensinamentos dados na actividade informativa acabada de referir, procurou-se, nos dias seguintes, pôr em prática a relação entre equivalentes e quantidade de insulina adequada; também se aprendeu a visualizar, a olho-nú, o espaço ocupado por cada tipo de alimento para fornecer 15 gr de hidratos de carbono.

Na manhã de 9/06/06, as crianças participantes e respectivos familiares deslocaram-se para o Centro de Estágios do Luso/Mealhada, onde decorria um encontro de outras crianças não diabéticas, denominado “Escolas em Movimento”, destinado, tanto quanto logrei perceber, a fazer compreender às crianças, de forma lúdica, a importância que o desporto tem para se conseguir uma vida saudável.

Aí, durante toda a manhã e no decurso da realização de diversos jogos e exercícios físicos, lográmos receber ensinamentos, de natureza sociológica, a saber:

a) as crianças diabéticas foram capazes de realizar, de forma entusiástica e igualmente capaz, todos os exercícios físicos cuja realização também era solicitada a crianças não diabéticas; isto é, do ponto de vista da actividade física e do desporto, não existe qualquer razão para que as crianças diabéticas se sintam diminuídas em relação àquelas que o não são;

b) as crianças diabéticas são capazes de conviver, sem quaisquer complexos de inferioridade, com crianças não diabéticas;

c) as crianças diabéticas não têm qualquer preocupação em ocultar a doença de que são portadoras, sendo capazes, mesmo, de trocar impressões sobre ela com órgãos de comunicação social que estavam presentes no local, concretamente com jornalistas da “RTP.”

Ainda nessa manhã, lográmos receber outros ensinamentos de carácter mais técnico, referentes à importância da prática desportiva para o melhor controlo das glicémias, aos ajustamentos que devem introduzir-se, por redução, na quantidade de insulina a administrar na toma anterior ao momento da prática de actividades desportivas.

Entretanto, também no decurso dessa manhã, retomaram-se e sedimentaram-se os contactos entre os pais das diferentes crianças diabéticas, no decurso dos quais começaram a trocar-se informações relativas à experiência de vida de cada um, na parte referente à Diabetes.

Na tarde desse mesmo dia, os participantes deslocaram-se às piscinas municipais da Mealhada, onde lográmos constatar que a Diabetes não constitui factor impeditivo à prática da natação e que a prática de actividades desportivas contribuem significativamente para melhor se controlarem os valores das glicémias.

À noite houve uma sessão informativa sobre “O Medo e Forma de o Vencer”, destinada a todos os participantes e conduzida pelo já aludido corpo técnico.

Ali, de forma informal e descontraída, foram relatadas diversas situações geradoras de sentimentos de medo e ansiedade por parte das crianças e seus pais (v.g. o medo das agulhas; o medo das hipoglicémias, particularmente a nocturna; o medo de confiar a criança diabética a terceiros; o medo decorrente da transição de estabelecimentos de ensino; o medo das hiperglicémias e das consequências daí eventualmente resultantes ...), do mesmo passo que foram delineadas estratégias para lidar e superar esses medos e ansiedades, sendo de especial relevo, nesta sede, o contributo dado por jovens-adultos diabéticos há muitos anos, que relataram a sua experiência de vida com a Diabetes, por uma jovem pedopsiquiatra e por uma psicóloga com larga experiência nesta área, todos participantes no encontro.

Durante todo o dia seguinte, as crianças e seus familiares participaram em várias actividades: na parte da manhã, subiu-se a Serra do Buçaco, até à Cruz Alta – foi uma caminhada longa e difícil, mas em que todos se ajudaram para concluir a caminhada, sendo que ninguém desistiu; à tarde, participámos em jogos tradicionais, no parque do Luso, onde as crianças receberam uma medalha, além de que houve lugar para alguns mergulhos na piscina do Inatel.

Os laços de amizade e de solidariedade entre todos ficavam cada vez mais fortes.

Na noite desse dia, todos participámos numa sessão em que cada um teve a oportunidade de expressar a sua opinião sobre a forma como ocorreu o encontro; no termo dela, cada criança recebeu um diploma de participação no encontro.

Para a manhã do dia seguinte, surpreendentemente, esteve reservada a parte mais dolorosa deste encontro: a despedida e a partida, numa ocasião em que a integração das crianças e seus familiares parecia o resultado de um alargado processo de convivência que, no entanto, se resumia a cerca de três dias.

Reflectindo sobre tudo quanto se passou, diremos que valeu inequivocamente a pena participar neste encontro, pois que:

a) o Luís e outras crianças diabéticas tiveram oportunidade de conviver entre si e com outras crianças não diabéticas, podendo tomar pessoalmente consciência, por um lado de que não estão isoladas no problema de saúde que as afecta, e por outro lado de que não há razões para se sentirem inferiorizadas em relação às crianças não diabéticas;

b) tomou-se efectiva consciência de que não se está só no problema que nos afecta e com o qual temos de nos confrontar;

c) foi possível estabelecer novas relações de amizade, seja entre crianças, seja entre adultos;

d) foi possível recolher nova e relevante informação técnica sobre formas de melhor controlar a Diabetes, seja a partir de técnicos especializados na matéria, seja a partir de jovens-adultos diabéticos;

e) foi possível trocar informação com outras famílias, de várias regiões e de diferentes estratos sócio-económicos, sobre o modo pelo qual convivem com o problema da Diabetes e sobre a forma pela qual procuram resolver os problemas daí decorrentes;

f) foi possível constatar que há pessoas que de forma absolutamente solidária, desinteressada e gratuita se predispõem a aplicar parte significativa do seu tempo com vista a organizar encontros desta natureza;

g) o encontro revelou índices profissionais de preparação organizativa que claramente superaram as melhores expectativas.

Por tudo quanto vem de referir-se, resta dizer a todos quantos venham a ler estas despretensiosas linhas: - muito obrigado, DTT e organizadores do encontro de férias mini-DTT/Luso 2006, pela oportunidade que nos proporcionaram de participar naquele encontro, com todas as vantagens daí decorrentes; - não deixem de participar em encontros desta natureza que a DTT venha a promover.

Jorge Manuel Silva Loureiro

(pai de mini-DTT)

42 anos

Luís Pedro Martins Loureiro

(mini-DTT)

9 anos